segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O QUE AS TRAGÉDIAS NOS MOSTRAM



Este artigo é uma carta dedicada a dois grandes homens e amigos, vítimas fatais da fúria da natureza, de uma triste tragédia acontecida em Teresópolis em janeiro de 2011. 

Queridos amigos Pedro e Kiko

Faz um ano que não tenho mais a alegria de poder contar com a presença de vocês na minha vida. Tanta coisa se foi... Voces, o meu paraíso, o paraíso de outras pessoas e de inúmeros seres vivos, famílias, enfim, muitos lares. No meu cantinho foi-se a minha casa, a mata e com ela toda aquela biodiversidade que a gente fazia questão de preservar e cuidar com tanta dedicação e carinho. Foram, praticamente, todas as árvores, plantas, flores, animais, nossos peixinhos e todo trabalho que a gente cravou em cada centímetro daquela terra maravilhosa. Uma destruição irreversível! O nosso lugar já não existe mais; morreu. Existe um outro, muito diferente de tudo. Existe um lugar maltratado pela fúria das águas, precisando passar por um processo de transformação para que a beleza e uma nova vida possa começar a brotar. A natureza vai demorar muitos anos para dar um jeito no vazio que ficou. Ficou um vazio árido e triste, não só na natureza, mas no coração das pessoas. Espero que a natureza possa, daqui para frente, bordar uma nova paisagem neste vazio. Sei que vai demorar dezenas de anos, mas acredito no talento dela e na capacidade de fazer ali um belo trabalho. Isto, se o homem permitir. No meio deste vazio todo ficou a nossa indignação. Neste vazio, as autoridades poderiam ter bordado a solidariedade e respeito pela vida humana, mas não foi o que aconteceu. As nossas autoridades preencheram este vazio com o lixo da corrupção. Cavaram um buraco mais fundo, fizeram a bagunça ficar ainda maior. Jogaram mais pedra em quem já estava tão ferido... Há mais sujeira lançada pelos nossos governantes do que a provocada pela própria tragédia. E a nossa justiça, a tal justiça dos homens, não faz nada para proteger e honrar quem precisa dela para resgatar o mínimo de dignidade. Jamais destrona os reis da corrupção, pelo contrário, arma as mais implicadas defesas para protegê-los da lei. Engraçado! Ser protegido da lei!.. Nossas autoridades gastam mais tempo pensando numa forma de criar ou encontrar uma lei que os protejam de uma outra que foi por eles burlada do que para criar soluções para os nossos problemas. Sabem porque? Porque os nossos mais graves problemas são criados por eles próprios. E o pior é que nós brasileiros continuamos daquele jeitinho que vocês conheceram muito bem. Ainda bem que vocês não precisam mais conviver com este jeitinho torto do brasileiro resolver as coisas. Aliás, vocês não gostavam nem um pouco disto. Precisamos de brasileiros como vocês. Não podemos mais perder pessoas assim – verdadeiros guerreiros. Eu sempre disse que você, Pedro, era o meu super-herói. Além de ser o funcionário mais leal que tive nesta vida, você transformava todos os sonhos que eu compartilhava com você em realidade. Não tinha tempo ruim, ou dificuldade que pudesse vencer você. Voce transformava o aparentemente impossível numa obra maravilhosa. Entretanto, nossas autoridades transformam o possível no impossível. Transformam nossos sonhos em frustração. E você, Kiko? Estava sempre de olho na minha casa e em cada cantinho do meu paraíso perdido. Sempre disponível, um verdadeiro amigo. Quando aparecia um problema, sabíamos onde te encontrar e sabíamos que podíamos, com certeza, contar contigo. Cadê o Kiko? O Kiko estava sempre ali, pronto para nos ajudar. Agora, diante de tantos problemas, cadê nossas autoridades? Diante de tanta corrupção, cadê a justiça? Nossas autoridades e a justiça estão sempre fugindo da gente. Não sabemos mais onde encontra-las. Acho que nossos governantes se transformaram em nossos vilões, no nosso maior inimigo. Se já estava bagunçado quando vocês estavam aqui, saibam que a bagunça ficou ainda maior. Tenho muita saudade de vocês! Passei este ano todo tentando compreender o porque desta tragédia. Se o mundo precisa de gente como vocês para arrumar esta bagunça, porque perdemos pessoas assim? Se o mundo precisa de tanta beleza, de mais verde, de mais natureza, porque perdemos, exatamente, tudo isto nesta terrível tragédia e em tantas outras que acontecem todos os anos por aqui? Porque perdemos o que mais precisamos? Deveríamos perder o que precisa ser eliminado. No entanto, diante de tragédias assim, ao invés de perdermos, ganhamos mais políticos corruptos. Há sempre algum deles tentando levar vantagem com a desgraça do outro. Descobri que tem certas coisas que não possuem explicação. Tem gente que explica dizendo que Deus quis assim. Colocam desejos terríveis em Deus.Voces que estão aí pertinho de Deus, pergunta pra ele algumas coisas que me deixam intrigada. Como é que ele pode querer matar milhares de árvores, plantas, animais inocentes e pessoas boas? Porque deseja destruir tanta beleza? Será que foi Deus mesmo quem quis tudo isto? Será que Deus tem que querer alguma coisa? Não vejo as coisas deste jeito. Para mim, o homem é quem deseja mais e mais; é ele quem nunca se sacia e se torna capaz de querer o pouco ou nada que ao outro restou; e o pior, torna-se capaz de roubar de quem não tem. Não acredito nos desejos de Deus; acredito num Deus sem propósitos fixos, numa força ou entidade tão livre que respeita o propósito que nós humanos traçamos para nós mesmos. Assim, o problema não é o desejo de Deus, mas os nossos propósitos frente a vida, frente a natureza e frente os desastres cada vez mais frequentes no nosso dia a dia. A natureza chegou violenta destruindo outras partes de si mesma. Será que esta natureza enlouqueceu sozinha ou será que temos alguma responsabilidade neste processo? Será que andamos cutucando ela com a nossa negligência? Passei um ano pensando muito nisto tudo. Não consegui obter todas as respostas, mas descobri algumas coisas que gostaria de compartilhar com vocês dois. Descobri que mais importante do que saber os porquês é descobrir o que fazer com tudo  aquilo que nos acontece. Eu não tive como reconstruir o meu paraíso, mas reconstruí muita coisa boa dentro de mim. Apesar de ter sido uma das piores experiências que passei nesta vida, pude descobrir nela algumas coisas positivas. Descobri que situações assim nos mostram a quantidade de lixo que estava escondida debaixo do tapete. Descobri que ao invés de limpa-lo, empurramos o lixo para o outro ou usamos a nossa hipocrisia para esconde-lo ainda mais. Ha quem conviva bem com ele, pois quem fede não sente o cheiro da sujeira. Desatres naturais são naturais até certo ponto; só não consigo achar natural a nossa forma nojenta de lidar com as consequencias dos mesmos. As tragédias continuarão mostrando muita sujeira, só não sei até quando continuaremos escondendo este lixo todo e afirmando que ele não é nosso. Eu, optei por zelar pela minha consciência; mantê-la sempre limpa e alerta. Quando a tragédia nos afeta, tomamos consciência de que ela pode atingir qualquer um e que ela não pertence apenas a quem foi afetado; ela pertence a todos nós. Eu sempre assisti as tragédias através dos telejornais; parecia que ela era uma experiência dolorosa que pertencia ao outro, mas derepente... Ela entrou dentro da minha casa sem pedir licença e o pior – levou tudo que eu, amorosamente, zelava no nosso paraíso. Descobri que todos nós estamos sujeitos a passar por experiências que, ilusoriamente, pensamos pertencer apenas ao outro. Eu tive o privilégio de ter sido poupada juntamente com minha família de viver o momento de terror que vocês viveram. Saí um dia antes. Tive a sorte de não perder meus familiares; sorte esta que suas filhas não tiveram, querido Kiko. Esta dor eu não vivi, mas posso imaginar a intensidade dela. Mas, tudo passa... Até nossa vida passa! Voces, por exemplo, estão aí. Eu que achava que meu super-herói jamais iria me deixar... Pela primeira vez meu super-herói não pôde salvar tudo aquilo que com tanto amor e trabalho me ajudou a construir, e o pior... Meu super-herói não conseguiu se salvar. Mas, tem uma coisa que não podemos negar – Voces conseguiram se salvar desta bagunça toda. Se pensarmos bem, a palavra salvar é muito relativa. Dependendo do contexto, vocês se salvaram e nós não. Pessoas como vocês deixam muita saudade e jamais passarão desapercebidas. Outra coisa que não deveria passar é a nossa consciência e a vergonha na cara de nossos políticos. Mas, dizem que político não tem vergonha na cara... Será? Nada melhor do que as atitudes deles para nos darem esta resposta. Se não tiverem o básico – vergonha na cara – como é que poderemos cobrar deles consciência? Se não podemos mais cobrar isto deles, podemos, no mínimo, cobrar de nós mesmos.
E tem mais... Em situações assim, a gente vê coisas inacreditáveis... Depois de tudo praticamente destruído, houve gente preocupada em resolver primeiro seus pequenos probleminhas ao invés dos  grandes problemas. Ao invés de buscar soluções para salvar e ajudar quem havia tudo perdido, estavam preocupadíssimos com os  seus minúsculos incômodos, como por exemplo em cobrar o conserto de uma pequena mureta da casa que caiu quando dezenas de casas estavam desabadas e seus ex-proprietários precisando de ajuda para resgatar alguma coisa que fosse ainda possível resgatar e em alguns casos mais graves, procurando por familiares soterrados. Enfim, a sensibilidade e a solidariedade ficou soterrada sob o egocentrismo de certas pessoas . Se uma tragédia deste tamanho não foi suficiente para faze-las enxergarem, o que pode, de fato, tocar estas pessoas? Mas, tem muita gente boa também. À dez anos atrás eu escrevi em meu livro Cardápio da Alma uma poesia sobre solidariedade. Acho que previ, inconscientemente, esta tragédia a ser vivida por mim e por todos nós no futuro. Previ o lado  luz, aquele lado que faz a gente se orgulhar de ser Ser Humano.

A enchente chegou
Carregando tudo
Só não carregou
O brilho dos estrábicos olhares
O doce sorriso desdentado
As cálidas mãos
Daquela brava gente
Que imersas na água suja
Infectavam o corpo
Lavando a alma
Que cristalina deslizava
Sobre a forte correnteza
Acolhendo com bravura
A frágil e impotente
Condição de ser humano
Que mesmo sem teto
Abrigava com o coração.
Esta bravura, eu jamais ei de esquecer. Mais do que bravura, este sentimento maravilhoso chamado solidariedade nos mantem de pé e com firmeza para seguir em frente mesmo quando voce vê todo seu mundo desabado diante de si.
Queridos amigos, a vida continua. Vocês não precisam mais pagar impostos que em grande parte vai direto para os cofres da corrupção, votar e ouvir todos os dias na TV inúmeras atrocidades que as autoridades corruptas  nos obrigam engolir e viver. Voces também não precisam mais sentir o cheiro do egoísmo e da insensibilidade naquelas pessoas que se acham protegidas por um Deus criado por elas; um Deus que conforme a ótica delas, as pouparam por serem especiais e matou e vitimizou milhares de seres e pessoas que mereciam. Como são especiais estas pessoas! Tive que ouvir tudo isto destas pessoas ditas especiais, na verdade, especialistas em olhar só para elas próprias. Embora triste, tudo isto vale a pena. Isto tudo nos situa e nos traz uma nova consciência.  
Sinto que Deus reservou um paraíso maravilhoso para vocês. Pedi muito a ele que desse a vocês um lindo jardim para cuidar. Sei que amavam este ofício; e o nosso paraíso é sempre o lugar onde a gente possa fazer e viver o que mais ama. Em momentos de muita dor pensei: de que valeu aquele suor todo para construir um paraíso que foi em poucas horas totalmente destruído? Valeu muito! Descobri que o que vale mesmo não é o que fica materializado, mas o que a gente vive quando está construindo. O que vale é o que fica na nossa alma. Lá, infelizmente, restou pouca coisa, mas aqui dentro ficou todos os sentimentos bons que compartilhei com voces, com aquele lugar e com tudo que fazia parte dele. Enquanto construía eu era muito feliz, e esta felicidade não partiu com a partida de tanta coisa boa. Ela se eternizou e me transformou numa pessoa mais especial, pois quando a gente convive com  coisas, seres e situações especiais a gente se torna uma pessoa diferente. A gente não se torna mais especial que ninguém, nos tornamos mais especiais para nós mesmos.
 Pedro, quando eu chegar aí, vou inventar aquelas loucuras gostosas que você curtia compartilhar. Vou adorar ajudar cuidar deste seu novo jardim. Hoje, por aqui, não tenho mais jardim para cuidar. Só tenho o coração das pessoas; o que já é uma grande coisa, na verdade, o mais importante jardim. Como voce pode perceber em tudo que acabei de relatar, tem muitos jardins áridos e repletos de ervas daninhas por aqui. Quero ser uma jardineira assim como voce, totalmente dedicada a estes jardins que precisam de tanto cuidado. Embora os tenha para cuidar, sinto falta de minhas flores, das árvores que plantei e cuidei, de meus peixinhos, do cheiro verde da grama que eu plantava e aparava, do riacho e das cachoeiras na qual eu me banhava, de meus cantinhos energéticos no meio da mata e sobre as pedras, dos nossos platôs, das minas de água pura, das frutas deliciosas, de nossas ervas e das aulas sobre elas que você me dava, daquela vista linda, dos quatis, dos enormes lagartos, dos esquilinhos, pássaros, macaquinhos, gatinhos, do cheiro do verde e do cheiro da terra, de nossos lanches depois de um dia pesado de trabalho, enfim , sinto muita falta de ti e de você, kiko. Sinto falta até das formigas que devoravam minhas flores, das abelhas que me atacaram e dos mosquitinhos que me mordiam quando eu me balançava na rede depois do almoço que eu sempre preparava. Mas, sei que da falta nasce o desejo. Desta falta nasceu em mim um desejo. Deste desejo, um importante propósito de vida daqui pra frente. Peçam pra Deus lhes contar depois, pois eu acho que já falei demais e vou deixar para a minha vida contar para as pessoas que ficaram aqui. Só que ela vai contar devagarinho, à medida que eu for gastando meus dias aqui na terra. Só posso lhes garantir uma coisa: jamais seguirei o exemplo de nossas autoridades e daquelas pessoas ditas mais especiais do que as outras. Portanto, não vou desperdiçar meu tempo, não vou corromper minha alma e saberei aproveitar ao máximo todos os meus recursos e os que me forem concedidos. Se eu tiver que seguir algum exemplo, com certeza, vocês estarão na minha lista.
Um abraço bem apertado daqueles que me faltou lhes dar. Agora, só na imaginação! E, mil beijos no coração.

Cláudia Luiza

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