quinta-feira, 7 de novembro de 2013

DIREITO DOS ANIMAIS


Carta Aberta sobre a libertação de animais do Instituto Royal


A ação que libertou animais mantidos pelo Instituto Royal, como cobaias, para fins de experimentação ganhou avassaladoramente a opinião pública, possivelmente como nunca antes no país, inclusive com repercussões internacionais. Chamou de forma ampliada a atenção da sociedade para questão altamente sensível e de nuclear apelo ético já de muito discutida na academia: a utilização de animais para pesquisa e ensino.

A percepção da redução dos animais a recursos ou objetos de estudo, denominados assim, pejorativamente, animais de laboratório, o que se dá seja por meio de imagens bizarras, já divulgadas há tempos e de fácil acesso, seja pela literatura ou regulações, causa choque e tensiona o senso comum, demonstrando que esta cultura se vê problematizada, confrontada, quando não com a legalidade, com a moralidade, gerando um sentimento crescente de indignação.

Todavia, o Instituto Royal é uma de muitas outras entidades que usam animais como meios, estando acompanhado de diversas instituições de ensino superior, inclusive entre as mais prestigiadas Universidades brasileiras, gozando de financiamento público, sob o beneplácito da legislação, a qual autoriza que animais sejam confinados, feridos, adoentados, alienados das suas propensões naturais, da busca de bem-estar, vivisseccionados, eutanasiados, mortos.

Os animais que estavam no Instituto Royal e que estão presos em lugares similares são sencientes e conscientes, possuem uma experiência subjetiva de ser e de estar no mundo, ostentam psique, perseguem a própria felicidade, sentem medo, solidão, estresse, dor; enfim, possuem vontades. Disto testemunha a recente Declaração de Cambridge (The Cambridge Declaration of Consciousness), datada de julho de 2012, firmada por cientistas de instituiçõescomo a Universidade de Stanford, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) e o Instituto Max Planck, redigido por Philip Low, em evento que contou com a presença de Stephen Hawking.

Animais são dotados de interesses, interesses que encontram paralelo com interesses humanos: em síntese, o interesse de não sofrer, o interesse pela própria vida. E, portanto, não há razão para não levar tais interesses em conta, devendo-se adotar, como imperativo ético, a igual consideração de interesses.

Conclusão advinda deste reconhecimento é que animais são titulares de direitos (à vida, à integridade física, à liberdade) e não coisas. São fins em si, não são meros meios para objetivos humanos ou mesmo de outros animais. São indivíduos, insubstituíveis; são sujeitos de direitos e não objetos. Animais não são agentes biológicos, como se diz em jargão. A ética a reger a conduta, neste âmbito, deve ser, pois, em tudo, similar à ética adotada para com seres humanos, vez que a uma posição igual deve ser dispensado tratamento igual.

A existência de lei em sentido contrário não tem o condão de tornar moral o que não é. A lei, como consabido, não é necessariamente fonte de legitimidade. Pode ser injusta, pode estar errada. Esteve muitas vezes ao longo da história: quando usurpou direitos dos negros, das mulheres, dos índios e de tantos outros. Estamos testemunhando mais um movimento pela expansão de direitos: agora aos animais. O melhor cenário é quando o Direito acompanha, pari passu, tais movimentos. Por vezes, porém, há um hiato e atos ilegais/criminalizados no passado passam a ser celebrados no futuro. As insurreições contra a escravidão negra, os quilombos, são um exemplo. Quando há um contratempo entre o Direito e os direitos, vê-se a invocação do direito de resistência/desobediência civil/legitima defesa de terceiro.

Por outro lado, a própria coerência interna do ordenamento jurídico é posta à baila. Enquanto a Constituição veda condutas que implicam crueldade aos animais, enquanto a Lei 9.605/98 tipifica o crime de maus-tratos, como entender lícitas as práticas que impõem sofrimento aos animais em nome da ciência? Não são cruéis? Não são maus-tratos? Como não concluir que a Lei 11.794/08, que regula a instrumentalização dos animais em nome da ciência, nãoestá em conflito com a Constituição, inconciliável com a vedação de maus-tratos. Ora, se não há maus-tratos, se não existe crueldade, por que não realizar tais experimentos diretamente com seres humanos, o modelo ideal (humano-humano ao invés de humano-animal)?

A relação de igualdade é antes moral do que fática. Daí a alteridade. Não bastassem os argumentos metodológico-científicos que condenam experiências com animais para efeitos em humanos, o debate acerca da utilização de animais é antes uma discussão ética do que técnico-científica. Livres e iguais é uma bandeira central dos direitos humanos. Obviamente, os animais não são iguais em tudo aos seres humanos. Mas, no que são, devem ser assim admitidos. Mesmo não sendo iguais em tudo, são livres. Devem, pois, ser livres da opressão, da instrumentalização que parcela da humanidade impõe, subjugando-os.

Como alertou Philip Low: “Não é mais possível dizer que não sabíamos.” Assim, sendo simplesmente inaceitável, insuportável compactuar com a exploração dos animais, os signatários abaixo se manifestam contra qualquer pesquisa/teste com animal que importe fazer dele meio para outro(s).

Em 28 de outubro de 2013.

Fábio Corrêa Souza de Oliveira
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO
Prof. do Mestrado em Direito, Democracia e Sustentabilidade da IMED/RS
Coordenador do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

Daniel Braga Lourenço
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/UFRRJ
Prof. da Pós-Graduação em Direito Ambiental da PUC/RJ
Prof. do Programa BAILE da Pace Law School (Estados Unidos)
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

David N. Cassuto
Prof. de Direito Ambiental da Pace Law University (White Plains, EUA)

Lenio Luiz Streck
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS)
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
Prof. Visitante da Universidade de Coimbra e da Universidade de Lisboa
Prof. Visitante da Universidad Javeriana (Bogotá)

Carlos Naconecy
Pesquisador do Oxford Centre for Animal Ethics
Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do RS/PUC-RS

Laerte Fernando Levai
Pesquisador do Grupo de Ética e Direito Animal do Diversitas da Universidade de São Paulo
Prof. da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo/MP-SP

Fernando Araújo
Prof. Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/FDUL

Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros
Profa. da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do RS/PUC-RS
Profa. do Mestrado em Direito e Sociedade da UNILASALLE/RS
Presidente do Instituto Piracema

Rita Leal Paixão
Diretora do Instituto Biomédico da Universidade Federal Fluminense/UFF
Profa. do Programa de Pós-Graduação em Medicina Veterinária da UFF
Profa. do Programa de Pós-Graduação em Ética Aplicada, Bioética e Saúde Coletiva da UFF/UFRJ/FIOCRUZ/UERJ (PPGBIOS)
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

Vicente de Paulo Barretto
Decano da Faculdade de Direito da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS)
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
Prof. Aposentado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Larissa Pinha de Oliveira
Profa. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

Paula Callefi
Reitora da Universidade Estácio de Sá/UNESA
Doutora em Historia pela Universidad Complutense de Madrid

Carlos Bolonha
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Vice-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Maria Clara Marques Dias
Profa. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Profa. do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ
Profa. do Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da UFRJ/UERJ/UFF/FIOCRUZ (PPGBIOS)
Coordenadora do Núcleo de Inclusão Social da UFRJ/NIS-UFRJ
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFF-UFRRJ

Tagore Trajano
Presidente do Instituto Abolicionista Animal/IAAMestre
Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia/UFBA

Julio Dornelles Goulart
Prof. da Faculdade de Direito das Faculdades Hélio Alonso/FACHA (RJ)

Danielle Tetü Rodrigues
Prof. da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do PR/PUC-PR
Vice-presidente do Instituto Abolicionista Animal/IAA

Cristiane Dupret
Profa. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Profa. da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro/EMERJ
Profa. da Faculdade de Direito Universidade Estácio de Sá/UNESA

Jaime Nudilemon Chatkin
Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul/MP-RS

Heron José Gordilho
Prof. do PPGD da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia/UFBA

Reynaldo Velloso
Presidente da Comissão de Proteção e Defesa dos Animais da OAB/RJ
Advogado e Biólogo

Ana Paula Perrota
Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ-IFCS

Marcelo Dealtry Turra
Prof. da Faculdade de Direito das Faculdades Hélio Alonso/FACHA (RJ)
Coordenador do Escritório de Prática Jurídica das Faculdades Hélio Alonso/FACHA (RJ)

André Karam Trindade
Coordenador do Mestrado em Direito, Democracia e Sustentabilidade da IMED/RS

Luigi Bonizzato
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Sérgio Augustin
Coordenador do Mestrado em Direito Ambiental da Universidade de Caxias do Sul/UCS

Cristiano Pacheco
Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/UCS
Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RS

Tiago Fensterseifer
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUC-RS
Defensor Público do Estado de São Paulo

Ruy Samuel Espíndola
Prof. da Escola da Magistratura de Santa Catarina/EMESC
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC

Eduardo Manuel Val
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense/UFF
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá

José Ribas Vieira
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Prof. Aposentado da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense/UFF
Prof. da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-RJ

Afranio Faustino
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/UFRRJ

José Roque Junges
Prof. e Pesquisador em Bioética e Saúde Coletiva
Prof. da Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS

Terla Bica Rodrigues
Pedagoga e Advogada
Diretora Executiva do Instituto Piracema

Mery Chalfun
Profa. da Universidade Castelo Branco/UCB
Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá/UNESA
Centro de Direito dos Animais, Ecologia Profunda/UFRJ-UFRRJ-UFF

Elis Cristina Uhry Lauxen
Mestranda em Direito pela Universidade do Vale dos Sinos/UNISINOS
Membro do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS

Rogério José Bento Nascimento
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
Prof. da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-RJ

Edna Raquel Hogemann
Profa. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO
Profa. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá

Fabio Alves Gomes de Oliveira
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Pesquisador do Núcleo de Inclusão Social - NIS/UFRJ

Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO

Carlos Eduardo Japiassú
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Bruno Müller
Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense/UFF
Doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Vânia Rall
Pesquisadora do Grupo de Ética e Direito Animal do Diversitas da Universidade de São Paulo

Paula Brügger
Profa. do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC
Mestre em Educação e Doutora em Ciências Humanas, Sociedade e Meio Ambiente

Carlos Alberto Rohrmann
Doutor em Direito pela University of California, Berkeley
Coordenador do Mestrado em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos, MG

Roberta Duboc Pedrinha
Coord. da Pós em Criminologia, Direito e Processo Penal da Universidade Candido Mendes
Profa. de Direito Penal da Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas/FGV
Profa. das Pós-Graduações de Saúde e Gênero da Fundação Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.
Profa. de Criminologia do Ministério de JustiçaProfa. da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro/EMERJ

Fernando Augusto da Rocha Rodrigues
Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ

Aluisio Gonçalves de Castro Mendes
Prof. da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Prof. do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá

James Fujii
Prof. da University of California, Irvine

Ellen Radovic
Advogada no Estado da Califórnia Immigration Lawyers of America/ILOA

Taís Salgado Pimenta
Geóloga do Instituto Estadual do Ambiente/INEA-RJ

Maria Cecilia Trannin
Doutora em Ecologia Social e Psicossociologia de Comunidades pela UFRJ
Coord. do MBA em Biodiversidade e Sustentabilidade e do MBA em Gestão Ambiental da Universidade Estácio de Sá
Profa. do IBMR - Centro UniversitárioAlexandra Isfahani-Hammond
Profa. da University of California, San Diego

Carlos Roberto Zanetti
Mestre e Doutor em Imunologia pela Escola Paulista de Medicina/EPM-UNIFESP
Prof. da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC

Aguinaldo Roberto Pinto
Mestre em Microbiologia e Imunologia e Doutor em Ciências pela Escola Paulista de Medicina -UNIFESP
Prof. do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC
Prof. de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós Graduação em Biotecnologia eBiociências da UFSC

Valéria Barbosa de Magalhães
Profa. da Universidade de São Paulo/USPTales Trez
Coordenador do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Alfenas/UNIFAL

Sônia T. Felipe
Profa. Aposentada de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC

Eliane Carmanim Lima
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS

sexta-feira, 22 de junho de 2012

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL


A PROBLEMÁTICA DO CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS



Luana Couto Campos



Sumário: 1) Introdução; 2) Uma Breve Análise Histórica das Reflexões sobre Sustentabilidade na ONU; 3) Desconstruindo o Conceito de Desenvolvimento Sustentável Proposto pela ONU; 4) Conclusão; 5) Referências Bibliográficas;





1)    Introdução



Cada vez que tentamos encarar uma única coisa de forma isolada descobrimos que ela está intimamente ligada a todo o resto do universo (MUNIR apud AVELINE, 1999, P. 59)



Quando percebemos o mundo como um sistema, toda a compreensão da vida é alterada. Isto porque, na medida em que vamos descobrindo a interligação existente entre os seres, passamos a enxergar a essência de cada um, e sentimos, naturalmente, que todas as criaturas são sujeitos e não objetos de apropriação humana.

A humanidade, porém, não se vê parte desta estrutura, fazendo com que pareça legítima a forma de tratamento dispensada, por ela, aos demais seres vivos. Contudo, apenas seremos capazes de assumir uma postura diferenciada, quando nos conscientizarmos da interdependência fundamental que existe entre nós e a natureza, haja vista que não estamos situados fora deste todo, nem acima de qualquer outra parte do mesmo, pois somos, apenas, um fio dentro de uma complexa teia da vida; como segmento desta, não precisamos nem conseguiremos protegê-la, mas devemos colaborar, através de um respeito mútuo, para que ela possa continuar existindo, de modo que seja possível a todos viver de forma íntegra.

Faz-se necessário, então, que retiremos nossas vendas a fim de perceber a natureza antiecológica e insustentável do nosso sistema econômico e social, que subjuga cada ser vivo simplesmente para ampliar o lucro. Portanto, precisa ficar claro para o ser humano que residimos em uma sociedade de constante degradação, a qual tem como preceito fundamental a multiplicação, independentemente dos custos desta esfomeada forma de encarar o progresso, mas que tal atitude nos desconecta da teia da vida, colocando em risco a nossa existência e a dos demais seres que dependem de uma convivência harmoniosa para sobreviver.

É, pois, em um contexto de mobilização da comunidade internacional, tendo esta o intuito de reestabelecer o equilíbrio da Terra, sem que sejam desconsiderados os interesses humanos, que surge a problemática do conceito de desenvolvimento sustentável feito pela ONU, o qual acaba por se esvair pelos próprios elementos que o compõe.

Para que possamos abrir os olhos de modo que seja possível perceber o desgaste desta definição, devemos deixar de lado a forma de ver e viver esta realidade, além de nos dispor a desafiar nossas bases éticas com a finalidade de entender o mundo e a própria vida como uma conexão de fatores.



2)    Uma Breve Análise Histórica das Reflexões sobre Sustentabilidade na ONU



Nas últimas décadas, mais precisamente a partir do ano de 1960, o ser humano passou a perceber mais claramente os reflexos e as consequências da sua ávida forma de se relacionar com a natureza e, então, a inquietude em relação à degradação ambiental assumiu proporções alarmantes. Veio a ser reconhecida internacionalmente, portanto, a emergência dos problemas ambientais, e a humanidade viu-se diante da responsabilidade de proteger o mundo em que está inserida.

Neste contexto, a comunidade global mostrou-se ansiosa para aprovar medidas, as quais pudessem reduzir os impactos ecológicos da ação humana. Deste modo, a Organização das Nações Unidas, como organização internacional de grande influência, defrontou-se com o encargo e a tarefa de encontrar meios de satisfazer às aspirações humanas de modo sensato, a fim de defender simultaneamente os interesses das gerações presentes e futuras.

Através da promoção de Conferências Internacionais, bem como Declarações, Programas, Relatórios, Agendas, Protocolos, Pactos e Convenções, a ONU demonstrou seu empenho em lidar com o novo cenário que surgia.

Cabe ressaltar, porém, que o esforço em atender à situação vigente teve seu pontapé inicial acarretado pelo alvoroço gerado pelo primeiro relatório publicado pelo Clube de Roma - “Os limites do crescimento”.

Diante deste novo quadro, em 1972, foi convocada a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, cujo fruto foi à criação, pela Assembleia Geral, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

Um pouco mais tarde, em 1987, trazendo à tona o conceito de desenvolvimento sustentável, a Comissão de Brundtland publicou o relatório “Nosso Futuro Comum”, o qual objetivava demonstrar a necessidade de vincular economia e ecologia.

As repercussões deste relatório levaram a criação do Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC), além de culminar na realização, em 1992, no Rio de Janeiro, da “Cúpula da Terra”, a qual acabou por conduzir a criação da Agenda 21, documento de extrema relevância, haja vista que veio a estabelecer a importância de cada país a se comprometer a refletir, global e localmente, sobre a cooperação no estudo de soluções para os problemas socioambientais.

O Relatório de Brundtland levou, ainda, à adoção, em 1992, da Convenção da ONU sobre a Diversidade Biológica e da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC);  e, em 1994, da Convenção da ONU de Combate à Desertificação em Países que sofrem com a Seca e/ou a Desertificação, particularmente na África, e do Programa de Ação para o Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento.

Outra Conferência de grande valor, realizada no ano de 1997, foi a “Cúpula da Terra +5”, que visava revisar e avaliar a implementação da Agenda 21. Não obstante, neste mesmo ano, é estabelecido o Protocolo de Kyoto, o qual tem como meta a diminuição da emissão dos gases de efeito estufa.

No ano de 2002, com o intuito de fazer o balanço dos desafios, das conquistas e das novas questões que surgiram após a Cúpula da Terra em 1992, realizou-se a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, trazendo consigo a Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável e um Plano de Implementação.

Neste ano de 2012, para dar prosseguimento a estas discussões, ocorrerá na cidade do Rio de Janeiro, no mês de junho, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, o Rio +20, cujos temas abordados serão “sustentabilidade”, “economia verde” e a “governança global do meio ambiente”.

O efeito positivo de todas estas e outras ações realizadas pela Organização das Nações Unidas durante quase meio século, foi o crescimento, com repercussão em cada parte do planeta, de reflexões acerca das questões ambientais, ainda que persista, em alguns, o ceticismo em relação à necessidade de se considerá-las.

Entretanto, é imprescindível haver uma autêntica alfabetização ecológica, de modo que se possa romper com a análise de desenvolvimento sustentável simplória e muitas vezes contraditória que, hoje, é disseminada internacionalmente e, a qual é adotada pela ONU.



3)    Desconstruindo o Conceito de Desenvolvimento Sustentável Proposto pela ONU



Para que possamos refletir acerca da problemática do conceito de desenvolvimento sustentável da ONU, devemos começar a reconhecer que na natureza não há hierarquias, e que esta ideia de graduação deriva de uma projeção humana.

Assim, é importante que nos inclinemos a pensar sistematicamente, pois um pensamento sistêmico é, necessariamente, um pensamento ecológico, à medida que aquele considera que as coisas estão sempre vinculadas ao seu meio ambiente, e que, portanto, cada parte de um sistema está aninhada à outra através de um emaranhado de redes.

Entretanto, a partir da publicação do relatório “Nosso Futuro Comum” pela Comissão de Brundtland, a ONU inaugura um conceito de desenvolvimento sustentável ausente de qualquer visão de conjunto.



Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender as necessidades e aspirações humanas (RELATÓRIO BRUNDTLAND, “NOSSO FUTURO COMUM”, 1987, P. 49).



Nota-se que esta definição traz à tona um antropocentrismo imanente, retomando a ideia da filosofia moral humanista, que colocava os seres humanos como principais, dentro de uma escala de importância. Deste modo, este conceito reforça o papel simplesmente secundário da natureza, ao encará-la como um mero recurso, o qual tem como finalidade atender as necessidades e aspirações humanas.



No mínimo, o desenvolvimento sustentável não deve pôr em risco os sistemas naturais que sustentam a vida na Terra: a atmosfera, as águas, os solos e os seres vivos (RELATÓRIO BRUNDTLAND, “NOSSO FUTURO COMUM”, 1987, P. 48).



Percebe-se, porém, certo entendimento a respeito da interdependência imperiosa existente entre ser humano e natureza, pois ao se reconhecer que o desenvolvimento sustentável não deve pôr em risco os sistemas naturais que sustentam a vida na Terra, a ONU mostra compreender a ideia de que a sobrevivência da espécie humana está, de fato, respaldada na proteção do meio ambiente natural. Contudo, a definição elaborada visa apenas à perpetuação desta espécie, não sendo, portanto, um desenvolvimento sustentável verdadeiro, já que este acaba não sendo sustentável para os demais seres vivos.

Importa mostrar que esta não é a única forma de se pensar sobre o assunto, haja vista que há movimentos do constitucionalismo ocorridos recentemente em países latino-americanos (Bolívia, Equador e Venezuela) que ressaltam a importância de se reservar à natureza direitos.



Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.

Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda.

El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema (CONSTITUIÇÃO DO EQUADOR).



Art. 71. A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos.

Toda pessoa, comunidade, povoado, ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza. Para aplicar e interpretar estes direitos, observar-se-ão os princípios estabelecidos na Constituição no que for pertinente.

O Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas e os entes coletivos para que protejam a natureza e promovam o respeito a todos os elementos que formam um ecossistema (CONSTITUIÇÃO DO EQUADOR/Tradução livre).



Além disso, na década de 1970, surge a expressão Ecologia Profunda cunhada pelo filósofo norueguês Arne Naess, que veio inaugurar a concepção de que é extremamente necessário atribuir o valor intrínseco a todos os seres vivos e ecossistemas. Esta nova perspectiva altera toda forma de encarar a proteção do meio ambiente, pois tal compreensão faz desaparecer aquela faceta antropocêntrica concebida por um pensamento tradicional e majoritário, a chamada Ecologia Rasa.



PRINCÍPIOS BÁSICOS DA ECOLOGIA PROFUNDA¹:

Platform Principles of the Deep Ecology Movement²



1. Todos os seres vivos têm valor intrínseco.

All living beings have intrinsic value.

2. A diversidade e riqueza da vida têm valor intrínseco.

The diversity and richness of life has intrinsic value.

3. Exceto para satisfazer necessidades humanas vitais, a humanidade não possui o direito de reduzir essa diversidade e riqueza.

Except to satisfy vital human needs, humankind does not have a right to reduce this diversity and richness.

4. Seria melhor para os seres humanos se houvesse menos deles, e muito melhor para outras criaturas vivas.

It would be better for human beings if there were fewer of them, and much better for other living creatures.

5. Atualmente a extensão da interferência humana nos vários ecossistemas não é sustentável, e a falta de sustentabilidade está crescendo.

Today the extent and nature of human interference in the various ecosystems is not sustainable, and lack of sustainability is rising.

6. Melhora decisiva requer mudança considerável: social, econômica, tecnológica e ideológica.

Decisive improvement requires considerable change: social, economic, technological and ideological.

7. Uma mudança ideológica implicaria essencialmente a busca de uma melhor qualidade de vida em vez de um alto padrão de vida.

An ideological change would essentially entail seeking a better quality of life rather than a raised standard of living.

8. Aqueles que aceitam os pontos acima mencionados são responsáveis por tentar contribuir direta ou indiretamente para a realização das mudanças necessárias.

Those who accept the aforementioned points are responsible for trying to contri;bute directly or indirectly to the realization of the necessary changes.


¹ Tradução livre.

² Fonte: NAESS, Arne with Per Haukeland. (2002). Life’s Philosophy: Reason and Feeling in a Deeper World. Athens, GA: University of Georgia Press. p. 108-109 apud DRENGSON, Alan; DEVALL, Bill. The Deep Ecology Movement: Origins, Development& Future Prospects. The Trumpeter, volume 26, Number 2 (2010). p. 54.

Ademais, o conceito de desenvolvimento sustentável proposto pela ONU é bastante contraditório, já que prevê o aumento do potencial produtivo.

Num mundo onde a pobreza e a injustiça são endêmicas, sempre poderão ocorrer crises ecológicas e de outros tipos […] por isso o desenvolvimento sustentável exige que as sociedades atendam às necessidades humanas, tanto aumentando o potencial de produção quanto assegurando a todos as mesmas oportunidades (RELATÓRIO BRUNDTLAND, “NOSSO FUTURO COMUM”, 1987, P. 47).



Fica evidente, portanto, que o mesmo está intimamente associado à lógica do crescimento; e o crescimento é, justamente, o oposto de sustentabilidade, pois obedece a uma estratégia que não a do equilíbrio; ele não é integrador, mas individualizante. Ao revés, o sistema natural visa o coletivo, de modo que seja possível uma constante harmonização dos processos cíclicos da natureza. Além disso, o desenvolvimento sustentável previsto pela ONU é linear, enquanto a regeneração da natureza é circular.

O crescimento obedece à estratégia das células cancerígenas. É um fenômeno de aumento incontrolado de células, desligadas do sistema global do organismo, que vai conquistando autonomia até predominar e assim levar o paciente à morte. O desenvolvimento obedece à estratégia do embrião: ele também cresce, mas dentro do todo, colocando cada órgão no seu lugar, na devida quantidade de energia, hormônio e no seu devido tempo. Esse desenvolvimento é naturalmente sustentável porque acontece em equilíbrio com todos os fatores (BOFF, Leonardo. Responder Florindo, 2004, P. 80).



É claro que não é possível um impacto ambiental zero, mesmo porque, dentro de um ecossistema, todos os organismos produzem resíduos, porém, nosso sistema econômico presume a maior produção possível no menor tempo exequível. Tudo isso acaba por impossibilitar a recuperação do meio ambiente, pois são produzidos tantos resíduos que a natureza não consegue reciclá-los.



Mas a Agenda 21 foi além das questões ambientais para abordar os padrões de desenvolvimento que causam danos ao meio ambiente. Elas incluem: a pobreza e a dívida externa dos países em desenvolvimento; padrões insustentáveis de produção e consumo; pressões demográficas e a estrutura da economia internacional. O programa de ação também recomendou meios de fortalecer o papel desempenhado pelos grandes grupos – mulheres, organizações sindicais, agricultores, crianças e jovens, povos indígenas, comunidade científica, autoridades locais, empresas, indústrias e ONGs – para alcançar o desenvolvimento sustentável. (http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-o-meio-ambiente/ - Acesso em 20/06/2012 às 12h07min).



Vale salientar que este conceito elenca a pobreza como causa da degradação ecológica, o que é equivocado, pois ambos são resultados do tipo de desenvolvimento que ampara o capitalismo. É este que deteriora o meio ambiente e gera a pobreza, já que ele é sustentado por uma desigualdade social aparente e desejada; desejada porque a nossa ordem econômica a estimula, visto que sem ela não haveria o lucro supremo, tendo em vista que não existiria a massa de manobra necessária para que este ganho fosse possível.

Atualmente, com o conceito de desenvolvimento sustentável na moda, o sistema capitalista forja uma aparência de sistema econômico em consonância com a natureza, o que gera um grande perigo, pois o mesmo beneficia-se da “consciência” das pessoas para alcançar o seu almejado lucro. É fácil perceber a quantidade imensa de produtos ecologicamente corretos que surgem hoje no mercado com o preço demasiadamente elevado, forçando a consumi-los aqueles que enxergam a necessidade de visualizar os problemas ecológicos com maior atenção.

As pessoas, porém, não foram, de maneira proposital, alfabetizadas ecologicamente para perceber que deve ser feito algo mais profundo, acabando se convencendo que o consumo de um produto ambientalmente pensado é suficientemente capaz de proteger todo um planeta. Deixemos claro que tais atitudes são importantes, mas fazem parte de um disfarce criado pelo nosso sistema para que a reflexão que deveria ser feita acerca de um conceito de desenvolvimento sustentável não aconteça, de modo que ele permaneça como é apresentado hoje e, por consequência, mantenha imutável toda uma estrutura econômica e social. Por isso, é importante que nos aventuremos a criticar esta definição amplamente difundida no mundo, visto que quando mal utilizada surge, de maneira dissimulada, uma preocupação com o meio ambiente, enquanto, na verdade, o que se preza é o próprio caráter detonador do nosso sistema.

Ao invés de buscarmos, portanto, na hipocrisia de um conceito mal formulado a justificativa para uma atitude vil, ou aceitemos a necessidade imperativa de mudança de toda uma ordem, ou assumamos, verdadeiramente, a ideia de que em razão de um comportamento humano egocêntrico, este pálido ponto azul, chamado planeta Terra, perderá grande parte da diversidade da vida que nele reside.



4)    Conclusão



Tais reflexões nos convencem da urgência de pensarmos a sustentabilidade de forma diversa para que, de fato, seja possível construirmos um conceito de desenvolvimento sustentável condizente.

Relembre-se aqui que se o que nos importa é a sustentabilidade, então, sejamos francos em reconhecer que ainda vivemos na era do progresso a qualquer custo; e consideremos que hoje há apenas uma tentativa dissimulada de mascarar, através de uma sensação de mudança do paradigma atual, sob a égide de postura ecologicamente correta, um sistema, de fato, não empenhado em modificar a situação vigente.

Portanto, a problemática deste conceito de desenvolvimento sustentável, dificilmente virá a ser superada, tendo em vista que enquanto a degradação ambiental não ameaçar diretamente nossa ordem econômica e social, nada será feito pelos governos nacionais e organizações internacionais, sendo assim, continuaremos vivemos em um mundo de “faz de conta”.

Ao invés, porém, de nos dispormos a criar um novo conceito, devíamos admitir o valor intrínseco inerente a cada ser vivo e nos conscientizarmos da dignidade de cada um, pois apenas assim podemos elaborar uma grande mudança do modelo hodierno, aliás, a mais eficaz de todas, já que ela cresce dentro da consciência e do coração de cada ser humano.

Para isso, é imprescindível que deixemos de lado aquela compreensão “especista”, a fim de abraçarmos o natural ideal ético de colaboração com as demais criaturas; natural, pois a dignidade da pessoa humana se confunde com a dignidade da vida pelo simples fato de dela fazer parte.

 O cuidado flui naturalmente se o "eu" é ampliado e aprofundado de modo que a proteção da Natureza livre seja sentida e concebida como proteção de nós mesmos [...] se a realidade é como é experimentada pelo eu ecológico, nosso comportamento, de maneira natural e bela, segue normas de estrita ética ambientalista (Ame Naess, citado in Devall e Sessions, 1985, P. 74).



5)    Referências bibliográficas



BOFF, Leonardo. Responder Florindo, Da Crise da Civilização a uma Revolução Radicalmente Humana.



BOFF, Leonardo. Sustentabilidade, o que é – o que não é?



BOFF, Leonardo. Ecologia, Mundialização, Espiritualidade.



AVELINE, Carlos Cardoso. A Vida Secreta da Natureza, Uma Iniciação à Ecologia Profunda.



LATOUCHE, Serge. Pequeno Tratado do Decrescimento Econômico.



FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: Direito ao Futuro.



CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida.



SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas Notas sobre a Dimensão Ecológica da Dignidade da Pessoa Humana e sobre a Dignidade da Vida em Geral.



WOLKMER, Antonio Carlos. FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo Latino-Americano: Estado Plurinacional e Pluralismo Jurídico.



COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum.








segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O QUE AS TRAGÉDIAS NOS MOSTRAM



Este artigo é uma carta dedicada a dois grandes homens e amigos, vítimas fatais da fúria da natureza, de uma triste tragédia acontecida em Teresópolis em janeiro de 2011. 

Queridos amigos Pedro e Kiko

Faz um ano que não tenho mais a alegria de poder contar com a presença de vocês na minha vida. Tanta coisa se foi... Voces, o meu paraíso, o paraíso de outras pessoas e de inúmeros seres vivos, famílias, enfim, muitos lares. No meu cantinho foi-se a minha casa, a mata e com ela toda aquela biodiversidade que a gente fazia questão de preservar e cuidar com tanta dedicação e carinho. Foram, praticamente, todas as árvores, plantas, flores, animais, nossos peixinhos e todo trabalho que a gente cravou em cada centímetro daquela terra maravilhosa. Uma destruição irreversível! O nosso lugar já não existe mais; morreu. Existe um outro, muito diferente de tudo. Existe um lugar maltratado pela fúria das águas, precisando passar por um processo de transformação para que a beleza e uma nova vida possa começar a brotar. A natureza vai demorar muitos anos para dar um jeito no vazio que ficou. Ficou um vazio árido e triste, não só na natureza, mas no coração das pessoas. Espero que a natureza possa, daqui para frente, bordar uma nova paisagem neste vazio. Sei que vai demorar dezenas de anos, mas acredito no talento dela e na capacidade de fazer ali um belo trabalho. Isto, se o homem permitir. No meio deste vazio todo ficou a nossa indignação. Neste vazio, as autoridades poderiam ter bordado a solidariedade e respeito pela vida humana, mas não foi o que aconteceu. As nossas autoridades preencheram este vazio com o lixo da corrupção. Cavaram um buraco mais fundo, fizeram a bagunça ficar ainda maior. Jogaram mais pedra em quem já estava tão ferido... Há mais sujeira lançada pelos nossos governantes do que a provocada pela própria tragédia. E a nossa justiça, a tal justiça dos homens, não faz nada para proteger e honrar quem precisa dela para resgatar o mínimo de dignidade. Jamais destrona os reis da corrupção, pelo contrário, arma as mais implicadas defesas para protegê-los da lei. Engraçado! Ser protegido da lei!.. Nossas autoridades gastam mais tempo pensando numa forma de criar ou encontrar uma lei que os protejam de uma outra que foi por eles burlada do que para criar soluções para os nossos problemas. Sabem porque? Porque os nossos mais graves problemas são criados por eles próprios. E o pior é que nós brasileiros continuamos daquele jeitinho que vocês conheceram muito bem. Ainda bem que vocês não precisam mais conviver com este jeitinho torto do brasileiro resolver as coisas. Aliás, vocês não gostavam nem um pouco disto. Precisamos de brasileiros como vocês. Não podemos mais perder pessoas assim – verdadeiros guerreiros. Eu sempre disse que você, Pedro, era o meu super-herói. Além de ser o funcionário mais leal que tive nesta vida, você transformava todos os sonhos que eu compartilhava com você em realidade. Não tinha tempo ruim, ou dificuldade que pudesse vencer você. Voce transformava o aparentemente impossível numa obra maravilhosa. Entretanto, nossas autoridades transformam o possível no impossível. Transformam nossos sonhos em frustração. E você, Kiko? Estava sempre de olho na minha casa e em cada cantinho do meu paraíso perdido. Sempre disponível, um verdadeiro amigo. Quando aparecia um problema, sabíamos onde te encontrar e sabíamos que podíamos, com certeza, contar contigo. Cadê o Kiko? O Kiko estava sempre ali, pronto para nos ajudar. Agora, diante de tantos problemas, cadê nossas autoridades? Diante de tanta corrupção, cadê a justiça? Nossas autoridades e a justiça estão sempre fugindo da gente. Não sabemos mais onde encontra-las. Acho que nossos governantes se transformaram em nossos vilões, no nosso maior inimigo. Se já estava bagunçado quando vocês estavam aqui, saibam que a bagunça ficou ainda maior. Tenho muita saudade de vocês! Passei este ano todo tentando compreender o porque desta tragédia. Se o mundo precisa de gente como vocês para arrumar esta bagunça, porque perdemos pessoas assim? Se o mundo precisa de tanta beleza, de mais verde, de mais natureza, porque perdemos, exatamente, tudo isto nesta terrível tragédia e em tantas outras que acontecem todos os anos por aqui? Porque perdemos o que mais precisamos? Deveríamos perder o que precisa ser eliminado. No entanto, diante de tragédias assim, ao invés de perdermos, ganhamos mais políticos corruptos. Há sempre algum deles tentando levar vantagem com a desgraça do outro. Descobri que tem certas coisas que não possuem explicação. Tem gente que explica dizendo que Deus quis assim. Colocam desejos terríveis em Deus.Voces que estão aí pertinho de Deus, pergunta pra ele algumas coisas que me deixam intrigada. Como é que ele pode querer matar milhares de árvores, plantas, animais inocentes e pessoas boas? Porque deseja destruir tanta beleza? Será que foi Deus mesmo quem quis tudo isto? Será que Deus tem que querer alguma coisa? Não vejo as coisas deste jeito. Para mim, o homem é quem deseja mais e mais; é ele quem nunca se sacia e se torna capaz de querer o pouco ou nada que ao outro restou; e o pior, torna-se capaz de roubar de quem não tem. Não acredito nos desejos de Deus; acredito num Deus sem propósitos fixos, numa força ou entidade tão livre que respeita o propósito que nós humanos traçamos para nós mesmos. Assim, o problema não é o desejo de Deus, mas os nossos propósitos frente a vida, frente a natureza e frente os desastres cada vez mais frequentes no nosso dia a dia. A natureza chegou violenta destruindo outras partes de si mesma. Será que esta natureza enlouqueceu sozinha ou será que temos alguma responsabilidade neste processo? Será que andamos cutucando ela com a nossa negligência? Passei um ano pensando muito nisto tudo. Não consegui obter todas as respostas, mas descobri algumas coisas que gostaria de compartilhar com vocês dois. Descobri que mais importante do que saber os porquês é descobrir o que fazer com tudo  aquilo que nos acontece. Eu não tive como reconstruir o meu paraíso, mas reconstruí muita coisa boa dentro de mim. Apesar de ter sido uma das piores experiências que passei nesta vida, pude descobrir nela algumas coisas positivas. Descobri que situações assim nos mostram a quantidade de lixo que estava escondida debaixo do tapete. Descobri que ao invés de limpa-lo, empurramos o lixo para o outro ou usamos a nossa hipocrisia para esconde-lo ainda mais. Ha quem conviva bem com ele, pois quem fede não sente o cheiro da sujeira. Desatres naturais são naturais até certo ponto; só não consigo achar natural a nossa forma nojenta de lidar com as consequencias dos mesmos. As tragédias continuarão mostrando muita sujeira, só não sei até quando continuaremos escondendo este lixo todo e afirmando que ele não é nosso. Eu, optei por zelar pela minha consciência; mantê-la sempre limpa e alerta. Quando a tragédia nos afeta, tomamos consciência de que ela pode atingir qualquer um e que ela não pertence apenas a quem foi afetado; ela pertence a todos nós. Eu sempre assisti as tragédias através dos telejornais; parecia que ela era uma experiência dolorosa que pertencia ao outro, mas derepente... Ela entrou dentro da minha casa sem pedir licença e o pior – levou tudo que eu, amorosamente, zelava no nosso paraíso. Descobri que todos nós estamos sujeitos a passar por experiências que, ilusoriamente, pensamos pertencer apenas ao outro. Eu tive o privilégio de ter sido poupada juntamente com minha família de viver o momento de terror que vocês viveram. Saí um dia antes. Tive a sorte de não perder meus familiares; sorte esta que suas filhas não tiveram, querido Kiko. Esta dor eu não vivi, mas posso imaginar a intensidade dela. Mas, tudo passa... Até nossa vida passa! Voces, por exemplo, estão aí. Eu que achava que meu super-herói jamais iria me deixar... Pela primeira vez meu super-herói não pôde salvar tudo aquilo que com tanto amor e trabalho me ajudou a construir, e o pior... Meu super-herói não conseguiu se salvar. Mas, tem uma coisa que não podemos negar – Voces conseguiram se salvar desta bagunça toda. Se pensarmos bem, a palavra salvar é muito relativa. Dependendo do contexto, vocês se salvaram e nós não. Pessoas como vocês deixam muita saudade e jamais passarão desapercebidas. Outra coisa que não deveria passar é a nossa consciência e a vergonha na cara de nossos políticos. Mas, dizem que político não tem vergonha na cara... Será? Nada melhor do que as atitudes deles para nos darem esta resposta. Se não tiverem o básico – vergonha na cara – como é que poderemos cobrar deles consciência? Se não podemos mais cobrar isto deles, podemos, no mínimo, cobrar de nós mesmos.
E tem mais... Em situações assim, a gente vê coisas inacreditáveis... Depois de tudo praticamente destruído, houve gente preocupada em resolver primeiro seus pequenos probleminhas ao invés dos  grandes problemas. Ao invés de buscar soluções para salvar e ajudar quem havia tudo perdido, estavam preocupadíssimos com os  seus minúsculos incômodos, como por exemplo em cobrar o conserto de uma pequena mureta da casa que caiu quando dezenas de casas estavam desabadas e seus ex-proprietários precisando de ajuda para resgatar alguma coisa que fosse ainda possível resgatar e em alguns casos mais graves, procurando por familiares soterrados. Enfim, a sensibilidade e a solidariedade ficou soterrada sob o egocentrismo de certas pessoas . Se uma tragédia deste tamanho não foi suficiente para faze-las enxergarem, o que pode, de fato, tocar estas pessoas? Mas, tem muita gente boa também. À dez anos atrás eu escrevi em meu livro Cardápio da Alma uma poesia sobre solidariedade. Acho que previ, inconscientemente, esta tragédia a ser vivida por mim e por todos nós no futuro. Previ o lado  luz, aquele lado que faz a gente se orgulhar de ser Ser Humano.

A enchente chegou
Carregando tudo
Só não carregou
O brilho dos estrábicos olhares
O doce sorriso desdentado
As cálidas mãos
Daquela brava gente
Que imersas na água suja
Infectavam o corpo
Lavando a alma
Que cristalina deslizava
Sobre a forte correnteza
Acolhendo com bravura
A frágil e impotente
Condição de ser humano
Que mesmo sem teto
Abrigava com o coração.
Esta bravura, eu jamais ei de esquecer. Mais do que bravura, este sentimento maravilhoso chamado solidariedade nos mantem de pé e com firmeza para seguir em frente mesmo quando voce vê todo seu mundo desabado diante de si.
Queridos amigos, a vida continua. Vocês não precisam mais pagar impostos que em grande parte vai direto para os cofres da corrupção, votar e ouvir todos os dias na TV inúmeras atrocidades que as autoridades corruptas  nos obrigam engolir e viver. Voces também não precisam mais sentir o cheiro do egoísmo e da insensibilidade naquelas pessoas que se acham protegidas por um Deus criado por elas; um Deus que conforme a ótica delas, as pouparam por serem especiais e matou e vitimizou milhares de seres e pessoas que mereciam. Como são especiais estas pessoas! Tive que ouvir tudo isto destas pessoas ditas especiais, na verdade, especialistas em olhar só para elas próprias. Embora triste, tudo isto vale a pena. Isto tudo nos situa e nos traz uma nova consciência.  
Sinto que Deus reservou um paraíso maravilhoso para vocês. Pedi muito a ele que desse a vocês um lindo jardim para cuidar. Sei que amavam este ofício; e o nosso paraíso é sempre o lugar onde a gente possa fazer e viver o que mais ama. Em momentos de muita dor pensei: de que valeu aquele suor todo para construir um paraíso que foi em poucas horas totalmente destruído? Valeu muito! Descobri que o que vale mesmo não é o que fica materializado, mas o que a gente vive quando está construindo. O que vale é o que fica na nossa alma. Lá, infelizmente, restou pouca coisa, mas aqui dentro ficou todos os sentimentos bons que compartilhei com voces, com aquele lugar e com tudo que fazia parte dele. Enquanto construía eu era muito feliz, e esta felicidade não partiu com a partida de tanta coisa boa. Ela se eternizou e me transformou numa pessoa mais especial, pois quando a gente convive com  coisas, seres e situações especiais a gente se torna uma pessoa diferente. A gente não se torna mais especial que ninguém, nos tornamos mais especiais para nós mesmos.
 Pedro, quando eu chegar aí, vou inventar aquelas loucuras gostosas que você curtia compartilhar. Vou adorar ajudar cuidar deste seu novo jardim. Hoje, por aqui, não tenho mais jardim para cuidar. Só tenho o coração das pessoas; o que já é uma grande coisa, na verdade, o mais importante jardim. Como voce pode perceber em tudo que acabei de relatar, tem muitos jardins áridos e repletos de ervas daninhas por aqui. Quero ser uma jardineira assim como voce, totalmente dedicada a estes jardins que precisam de tanto cuidado. Embora os tenha para cuidar, sinto falta de minhas flores, das árvores que plantei e cuidei, de meus peixinhos, do cheiro verde da grama que eu plantava e aparava, do riacho e das cachoeiras na qual eu me banhava, de meus cantinhos energéticos no meio da mata e sobre as pedras, dos nossos platôs, das minas de água pura, das frutas deliciosas, de nossas ervas e das aulas sobre elas que você me dava, daquela vista linda, dos quatis, dos enormes lagartos, dos esquilinhos, pássaros, macaquinhos, gatinhos, do cheiro do verde e do cheiro da terra, de nossos lanches depois de um dia pesado de trabalho, enfim , sinto muita falta de ti e de você, kiko. Sinto falta até das formigas que devoravam minhas flores, das abelhas que me atacaram e dos mosquitinhos que me mordiam quando eu me balançava na rede depois do almoço que eu sempre preparava. Mas, sei que da falta nasce o desejo. Desta falta nasceu em mim um desejo. Deste desejo, um importante propósito de vida daqui pra frente. Peçam pra Deus lhes contar depois, pois eu acho que já falei demais e vou deixar para a minha vida contar para as pessoas que ficaram aqui. Só que ela vai contar devagarinho, à medida que eu for gastando meus dias aqui na terra. Só posso lhes garantir uma coisa: jamais seguirei o exemplo de nossas autoridades e daquelas pessoas ditas mais especiais do que as outras. Portanto, não vou desperdiçar meu tempo, não vou corromper minha alma e saberei aproveitar ao máximo todos os meus recursos e os que me forem concedidos. Se eu tiver que seguir algum exemplo, com certeza, vocês estarão na minha lista.
Um abraço bem apertado daqueles que me faltou lhes dar. Agora, só na imaginação! E, mil beijos no coração.

Cláudia Luiza